domingo, 4 de março de 2007

Conto - Lembranças da Infância

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O Grito do Inimigo - 134 - Lembranças da Infância
(um conto)
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Ela acordou novamente. Obviamente tratava-se de uma rotina. Levantou-se, espreguiçou-se, escovou dentes, banho tomou, coisas de se fazer pela manhã. Era gerente, e diferente do que se diz, gerente trabalha e muito, e ela trabalhava bastante. Morando sozinha na capital, vivia só, e era de uma independência impressionante. Pragmática, responsável, objetiva, alguns poderiam até chamá-la fria, mas isso era porque se dava pouco a romances e amores. Concentrava sua vida em seu trabalho, e isso era o suficiente para lhe ocupar praticamente todo o tempo que tinha desperta.
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Sua família havia ficado no interior, e foi com alguma estranheza que recebeu a ligação de sua irmã uma tarde. Seu celular nem sequer registrava aquele número na agenda, e ela ficou um tanto quanto aturdida ao ver que era sua única irmã. Irmã caçula. Sua irmã ainda morava naquela pequena cidade do interior, e algumas vezes havia pedido para vir para a capital, mas ela não autorizava nunca. Não se imaginava com alguém dentro de casa, era muito acostumada a ficar só e a presença de uma jovem iniciando sua vida profissional só iria desestabilizar seus horários e compromissos.
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Sua irmã havia lhe ligado num momento inadequado, dentro de alguns minutos ela teria uma reunião com a diretoria, onde teria que apresentar seu Relatório de Incidentes Críticos do Processo de Qualidade. Uma das milhões de reuniões que freqüentemente tinha, passava mais tempo em reuniões que andando ou pensando propriamente. Pediu que a irmã ligasse depois, mas ela insistiu, disse que era importante. Foi para sua sala, porque era muito reservada com suas coisas particulares, e sua irmã definitivamente era uma particularidade, que muitos sequer sabiam existir.
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Sua irmã lhe disse então, que ela e a mãe iam se mudar de casa – coisa que ela ignorava completamente – e nesse processo haviam encontrado uma caixa com coisas da infância dela. Aquilo soou totalmente estranho: “infância”. Lembrava-se vagamente de ter sido criança, obviamente devia ter sido, claro. Todo mundo foi. Mas ela tinha poucas lembranças, ousaria dizer pouquíssimas, e sempre se conformava com isso por causa do acidente sofrido em sua adolescência, onde havia batido a cabeça, e isso era uma explicação plausível para lembrar tão quase nada de ser criança.
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Por isso o estranhamento. “Minha infância” pensou com algum prazer. Encontrar essa caixa poderia ser bastante interessante, porque ali deveriam haver muitas coisas que a fariam lembrar o que foi ser criança, crescer na família que cresceu, no lugar que cresceu, e empolgada com a idéia pediu que a irmã enviasse a caixa para seu endereço pessoal. Sequer cogitou pedir que a irmã viesse até a capital lhe trazer a caixa, ou que ela mesmo fosse buscar em algum fim de semana. Pediu o envio a cobrar, agradeceu e disse que tinha que desligar. A irmã queria comentar sobre a mudança, mas ficou com o telefone mudo na mão. “Mulher estranha essa minha irmã!” pensou a jovem, e preparou-se para enviar a tal caixa.
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Foram alguns dias de quase agonia, ela pôde reparar. Ansiosa, aguardava a tal caixa, seus tesouros de infância, suas lembranças perdidas há tanto tempo, e num desses dias de franco desespero pela chegada da tal caixa, uma lembrança pipocou em sua mente: as caixas do tempo. Ela fazia isso freqüentemente durante sua infância, guardava coisas em caixas para abrir depois “de grande”, parecendo antecipar sua memória falha. Colocava fitas K7 para gravar e ia passando de rádio para rádio, rapidamente, sem ficar muito tempo em rádio nenhuma, para que depois de muito tempo, ao ouvir as fitas pudesse se lembrar das propagandas e vinhetas e músicas que as rádios tocavam em seu tempo de menina. Caixas do tempo!! Deveriam haver várias nessa caixa grande, e engraçado pensar assim, porque a irmã não havia falado o tamanho da caixa, mas ela a imaginava grande e recheada, uma caixa que precisaria de dois carregadores para trazê-la até o quinto andar, uma caixa que cabia uma vida de lembranças.... tinha que ser grande.
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Foi uma decepção quando recebeu o pacote. Não era muito maior que uma caixa de sapatos, e teve que se resignar que sua infância então não voltaria à sua memória em tanta quantidade, mas já estava feliz, fosse o tanto que fosse.
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Programou-se para abrir a caixa. Conseguiu uma folga no trabalho, ia ficar o dia todo em casa, em retiro, em busca de si. No dia anterior dormiu cedo com o auxílio de duas cápsulas brancas, tamanha sua ansiedade, e ao acordar percebeu que era um dia mais bonito. Colocou uma confortável e nova calcinha branca de algodão, uma camiseta folgada também branca, tomou um café reforçado; e a todo tempo olhava para a caixa sobre a mesa. Foi um ritual.
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Sentou-se somente depois de abrir todas as janelas e sentir o vento quente que vinha dos morros. Sentou-se e colocou a caixa na sua frente. Finalmente ela ia conhecer a criança que tinha sido. Abriu a caixa com tamanho carinho, que fosse um pergaminho não teria se desmanchado em suas mãos delicadas. Viu as fitas K7 e em desespero lembrou-se que não havia mais nenhum toca-fitas em sua vida, contemporânea que era, só haviam CD Players e MP3 players. Amaldiçoou a tecnologia moderna, amaldiçoou os avanços conquistados pela ciência de áudio, amaldiçoou e colocou as fitas cuidadosamente ao lado, no sofá. Teria outra oportunidade para ouvi-las, sabia disso. Respirou fundo, resignou-se e continuou sua jornada.
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A próxima coisa a encontrar foi uma revista. Era uma revista guardada dentro de um envelope plástico, com muito cuidado e entre encantada e curiosa, reparou que era uma revista esportiva que falava da conquista do Tri Campeonato de Futebol pela seleção nacional. Folheou reportagens que falavam da vida e do cotidiano dos jogadores, com fotos ilustrativas e muita alegria pela conquista da Copa. Não saberia dizer porque uma revista de futebol estaria guardada em suas coisas, afinal de contas não entendia nada de futebol, e sem sequer entender, sentia até mesmo uma certa repulsa pela idéia do esporte bretão. Ficou olhando aquela revista amarelada, imaginando que poderia lhe trazer alguma lembrança, mas nada aconteceu. Outro suspiro resignado, não estava acontecendo como ela imaginara.
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Abaixo da revista existia um ingresso de cinema, mas como qualquer ingresso de cinema não havia nenhuma inscrição sobre qual filme havia sido assistido, ou qual cinema era aquele. Nenhum sinal lhe saltava a memória, nada lhe surgia, nada acontecia, essa era a verdade. Começava a impacientar-se.
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Logo abaixo havia uma fita de vídeo cassete. E ficou feliz de não ter vendido o vídeo cassete quando havia comprado o DVD. Finalmente alguma coisa que ela poderia utilizar para buscar suas lembranças. Ficou animada novamente.
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Colocou a fita no vídeo cassete e sentou-se. O início era uma chiadeira enorme, e as imagens trêmulas a deixaram preocupada pela qualidade da fita, mas logo a imagem firmou-se e ela viu um homem sentando-se em frente a uma filmadora. Ela conhecia aquele homem, sabia disso! Ele buscava sentar-se rapidamente frente a uma filmadora, e parecia um tanto quanto embaraçado. Ela sentiu-se curiosa.
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Ele começou a falar:
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“Minha filha, se você estiver assistindo isso, é porque eu tive que ir embora.”
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Meu Deus do Céu!!! Aquele era o pai dela!!! Como havia esquecido completamente as feições de seu próprio pai. Mesmo não tendo vivido a vida inteira com ele, mas afinal de contas era o próprio pai. A fita continuava.
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“Infelizmente eu não pude estar com você por muito tempo. Mas eu vou colocar essa fita em uma de suas caixas do tempo – ‘ele sabia das caixas do tempo!’ – e um dia você vai poder me ver e me ouvir. Isso já me consola. Não tenho idéia de quando você vai ver essa fita, mas espero que você já esteja grande, madura, uma mulher feita, com a cabeça no lugar e possa me ouvir até o fim.”
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Era então o momento certo. Ela era uma mulher feita, com a cabeça no lugar, e mais importante: curiosíssima. Então ele sabia das caixas do tempo dela, que legal!
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“Você pode se perguntar porque eu vou embora, mas eu tenho que fazer isso. E tenho certeza que vou sofrer o resto da vida por isso, porque você é a minha amada, e eu vou ter que ir embora. E eu quero aproveitar essa nossa conversa... bem, essa minha conversa para te contar das coisas que eu nunca vou esquecer entre nós dois. Nunca vou poder te contar o tanto que eu fiquei feliz quando fiquei sabendo que você ia nascer. Nós éramos pobres, bastante pobres, e eu tive que buscar outro emprego porque ia nascer uma princesa na nossa casa.”
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Ela começava a sentir-se emocionada. Seu pai, falando pra ela.
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“Eu trabalhei duro pra você nascer num hospital bom, porque sua mãe sempre teve a saúde fraca, e eu não podia correr o risco de deixar você sofrer alguma coisa em mão de médicos ruins. Por isso eu procurei outro emprego, e isso foi muito bom, porque eu descobri que eu podia ser bom no que eu fazia. Você me trouxe tanta sorte, minha amada, que depois que você nasceu eu comecei a ganhar dinheiro de verdade, muito dinheiro. E nossa vida foi melhorando ao mesmo tempo em que você ia crescendo. Logo mudamos de casa, porque minha princesa não poderia viver naquele bairro onde morávamos. Fomos para uma casa grande, com um gramado enorme, onde criamos dois cachorrinhos.”
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Oh, meu deus! Estava funcionando!! Gramado... ela se lembrava de um gramado. Ainda era vago, mas certamente houve um lampejo à mera menção desse gramado.
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“E quando você falou ‘papa’ pela primeira vez. Eu corri pra me esconder e chorar, do tanto que eu fiquei feliz, do tanto que eu fiquei emocionado. Minha princesa falando papa. Eu te amo muito filha, não importa o que digam, eu te amo muito. Você aprendeu a andar rápido, eu sempre soube que você era muito inteligente e você logo estava andando pela casa, com aquelas perninhas gordinhas, com aquele bumbum lindo, correndo pra lá e pra cá, caindo pelos cantos, se machucando, e toda vez que você chorava eu te pegava no colo e te acalmava, e você logo parava de chorar. Eu te dava o dedo pra chupar e isso te acalmava muito. Eu lembro disso...”
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Ela enchia o olho de água. O pai que ela não se lembrava, falando de sua infância. Ela ainda não tinha muita lembrança. Alguma coisa a incomodava, talvez a falta de informação.
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“Quando você começou a ir pra escola, minha amada, eu fiquei tão alegre ao te ver com aquela ‘sainha’ rodada, aquela blusa branca bonitinha, de sandalinha franciscana. Gente, você tava tão linda naquele primeiro dia de aula, eu não conseguia parar de te olhar. E te levar pra escola, te entregar pra tia. E ver você indo pra sala, em fila, com seus outros coleguinhas.”
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Ela não conseguia chorar. Alguma coisa a segurava, e ela sentia o nó na garganta.
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“Foi nessa época.... foi aí. Eu não sei porque...”
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O pai ficava visivelmente nervoso na fita. Não sabia o que era que acontecia com ele.
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“Eu te amo, minha amada. Nunca esqueça disso, viu? Isso é o mais importante, no dia que você for ver essa fita, não esquece que eu te amo muito, mais que minha vida.”
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E agora ouvir “minha amada” começava a lhe soar desconfortável.
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“Eu que lhe dava banho, desde que você era um bebezinho. Porque sua mãe não conseguia te segurar, sempre fraca. Fraca. Uma molóide! Eu que lhe banhava. Trocava suas fraldas, colocava talco na sua bundinha linda, na sua chaninha. Nas suas assaduras. Eu que cuidei sempre de você, meu amor, fui sempre eu!”
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Náusea. Alguma coisa lhe dava náuseas agora. Imagens voejavam na cabeça.
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“E continuei te dando banho, na sua época de escola. Um dia um amigo do futebol me disse que você ia crescer e ter relação com um homem. Surrei-lhe como um cachorro!! Como dizer isso da minha amada, da minha filhinha?? Pois que você é meu amor. Só meu!”
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Ela agora chorava.
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“Por isso eu vou embora, meu amor, porque as pessoas não entendem nosso amor. Não entendem o que nós sentimos um pelo outro. E eu tenho que ir embora. Mas não quero que você se esqueça nunca que eu te amo muito.”
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E então ela se lembrou. Finalmente se lembrou porque sua infância tinha sido sempre uma mancha na sua memória. Ela se lembrou dos toques dele, dos banhos demorados, dos talcos, das calcinhas novas que ele sempre lhe comprava, e nesse momento sua náusea tornou-se insustentável, e ela vomitou.
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“Eu um dia quis tentar uma coisa nova, e ao invés de lhe dar o dedo pra chupar, PRA VOCÊ SE ACALMAR, MINHA FILHA!! PRA VOCÊ SE ACALMAR!! FOI SÓ POR ISSO!! Eu fiz de outro jeito, mas você já estava muito assustada. Devia ser aquelas meninas do colégio, te falando besteiras, te ensinando tudo errado. E eu te amando cada vez mais e você ficava mais assustada comigo.”
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Ela tentou se levantar mas suas pernas não obedeciam tão bem. E ela pareceu entender o porque fugir tanto tempo de relacionamentos, porque os namoros tão curtos, porque o medo de se entregar, porque a fuga eterna do contato, porque o sexo tão desagradável. E a procura eterna de um orgasmo, que nunca vinha. Que nunca veio sua vida inteira.
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“Meu amor, eu só fiz isso porque você queria. Só fiz o que nosso amor pedia, mas sua mãe um dia viu e não entendeu. Ela ficou com ciúme do amor que nós tínhamos um pelo outro. Ela ficou com inveja do que nós tínhamos. Ela aprontou uma bagunça. Então quando você for ver essa fita, saiba que eu te amo, sua mãe não!! SUA MÃE TEM INVEJA DE VOCÊ, MINHA AMADA!!!”
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Ela se lembrou do machucado em seu sexo. De um dia uma violação, e ela não havia entendido a dor, a sensação desagradável, a vergonha. E por estranho comportamento da memória que o corpo tem, sua vulva nesse momento parecia se umedecer, e ela se revoltou com o que parecia ser excitação. Mas era sangue. Uma hemorragia que descia lentamente por seu canal.
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Aquele monstro continuava na televisão, com o olhar cândido de um louco, com aquelas palavras que ela já não entendia mais nada, e por isso então ela havia escondido a maldita revista. Ele adorava aquela revista desgraçada, e ela roubou-a e a escondeu. Ele procurou muito tempo aquela merda de revista, e ela – somente ela – sabia onde a revista estava. Lembrou-se das caixas do tempo, todas as outras, ela havia destruído, não queria se lembrar de nada daquilo quando fosse "grande". Por isso tão pouca coisa, por isso tão poucas lembranças, por isso uma caixa pequena. Sua calcinha branca já manchava de vermelho escuro, suas pernas cada vez mais trêmulas e fracas. O desgraçado continuava falando...
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“Então eu vou embora, meu amor. Porque falaram que vão me prender e que eu nunca mais vou poder chegar perto de você, e só de pensar isso eu enlouqueço, isso não pode acontecer. Então vou fugir, e vou te procurar um dia. Pode esperar meu bem, porque eu vou te encontrar um dia, e nós vamos nos amar de novo, minha amada. E nós vamos ser felizes!! Eu vou te encontrar um dia!”
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Ela não aguentou mais. Arrancou a fita atabalhoadamente do vídeo cassete, e a arremessou longe. Tentou se firmar nas pernas, mas ainda era muito difícil, e com dificuldade dirigiu-se ao banheiro. Abriu o chuveiro e ficou debaixo dele, sentindo a água escorrer, por horas. O sangue misturando com a água rumo ao ralo.
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Seriam dias se limpando se ela não tivesse coisas a fazer. Não conseguiu almoçar, mas logo depois do que seria o horário de almoço dirigiu-se ao centro da cidade, e durante esse trajeto ficava vigiando por sobre o ombro a todo instante. Mudava de calçadas e por vezes parava nas ruas, olhando em volta. Sentia-se vigiada.
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Entrou na loja, apresentou seus documentos e comprou uma Magnum 480.
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Quinze balas no pente e agora ela estava pronta pra receber a visita do seu papai.
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O Inimigo do rei

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