terça-feira, 15 de agosto de 2006

Eis o que é um Grito do Inimigo - contos!



O nome "O Grito do Inimigo" foi inventado para dar vazão às minhas inquietações, que saíam em forma de textos desconexos, e depois foram virando contos. Para mostrar um pouco do que são esses contos, segue aí um dos "Gritos do Inimigo". Divirtam-se!


O Grito do Inimigo 176 – Fraternidade das janelas

“E desde quando grito é novidade nessa vizinhança? Se todo dia tem alguém dando um berro aqui no prédio, ali na quadra, na rua de trás, pra todo lado; eu ia assustar com um grito dado na praça aí da frente? Nem parei de ver minha novela. Quer dizer, claro que eu fico preocupada, não quero que você pense que eu sou tipo uma monstra assim, mas o que ia adiantar eu ir até a janela? Desgraça eu vejo na televisão toda noite. Fiquei quieta.”

“Gostosa miserável, com essa saiazinha me provocando. Pensa que eu não sei o que ela quer.”

Nem morava ali, estava hospedada na casa de uma tia. Tinha chegado na cidade há quatro dias, procurando melhorar de vida, porque na cidade onde tinha nascido não havia escolas, trabalho, oportunidades, e ela não queria ficar lá mofando esperando marido. Pediu autorização da mãe e do pai, ligou pra tia e pediu pouso. A tia ficou eufórica, adorava a menina (que já não era tão menina assim) e vivia sozinha mesmo, assim a solidão ia diminuir um pouco e ela ia ter alguém pra ajudar em casa, ler o jornal pra ela, ler as bulas dos remédios que eram muitas e de pequenitas letras.
Pediu benção da mãe e do pai. Deixou a mãe chorando copiosamente na rodoviária e seis horas depois já estava na cidade da tia, ansiosa, tensa e sem saber o que fazer com certeza. Mas tinha o endereço anotado e dinheiro para o táxi. Durante o trajeto o motorista do táxi comentou sobre a vizinhança onde a tia morava, bairro de classe média, mas que tinha um histórico de ser meio perigoso, principalmente depois que escurecia.

“Cara, tinha um monte de janela com luz acesa e o povo amontoado olhando. Sabe quando tem aqueles olhinhos em filme de terror? Pois então, era desse jeito, aquele tanto de pares de olhinhos vermelhos e espremidos, olhando para baixo, decorando cara movimento do que acontecia. Ninguém pode dizer que não viu, é mentira. Todo mundo viu, o tempo todo!”


“Meudeusdocéu, ninguém vai me ajudar? Que lugar é isso?”


Esforçada, isso ela era. Na noite que chegou na casa da tia, cumprimentou-a com carinho e alegria, estava ansiosa para começar a viver coisas da cidade, mas aquele apartamento da tia pedia uma faxina. Ela sabia, porque era muito cuidadosa com coisas de casa, e a pobre tia já não tinha mais idade para ficar agarrada a um cabo de rodo ou esfregando pano nas quinas do chão da sala. Mas não falou nada, não queria ser mal-educada com a tia que a recebera com tanto carinho, suco de manga e biscoito frito. Conversaram muito naquela noite, matando saudade uma da outra e das histórias de tanta gente sem se ver a tanto tempo. Riram muito das lembranças surgidas e ela pôde contar para a tia todos os planos que tinha para sua vida dali em diante, e de tudo que esperava que acontecesse. A tia via aqueles olhos brilhando e sabia que aquela menina ia conquistar muita coisa, era brigona, batalhadora. Ela ia dar certo.
No dia seguinte a menina acordou cedo e preparou o café, surpreendendo a tia. E quando a querida e velha tia lhe respondeu que – se quisesse – ela poderia ajudar na limpeza da casa, passou o resto do dia agarrada nas lides higiênicas e de assepsia. Lavou aquele apartamento como ele jamais havia sido lavado em eras, todo o chão foi varrido, lavado e encerado, as paredes tiveram seus quadros retirados, espanados, lustrados, lavaram-se todas as paredes retirando as marcas antigas de velhos pregos ou armários que ali descansaram por gerações. Dedicou-se às almofadas e sofás com tanto empenho que ao final pareciam novos, sem ácaros ou poeira ou cheiro de suor velho de gente que vê televisão deitada. Moedas, restos de pipoca, cabelo, sujeira, caca de nariz e um monte de outros tesouros foram encontrados em meio às almofadas velhas e mal tratadas dos sofás.
Na hora do almoço já se encontrava em pandarecos, suja e cansada; mas tanto ainda havia a fazer, e as cortinas ainda estavam de molho. E quem lavou cortina uma vez na vida sabe o transtorno e o esforço monstruoso que é, pois ela ainda tinha também seis ou sete toalhas esperando suas atenções, para logo depois das cortinas. Comeu com uma fome de pedreiro toda a comida de pouco tempero que a tia lhe preparara com carinho, cochilou por quinze minutos e levantou com garra dobrada, totalmente refeita e pronta para a batalha que ainda viria.
Foi extenuante, mas ao fim do dia era um outro apartamento. Caixas e caixas de coisas velhas e entulhadas foram jogadas fora. Velhas fotos e cartas foram encontradas e renderam mais horas de história e risadas até que, finalmente, ela caiu de sono na frente da tia.

“- Tenho muito medo de morar aqui, porque isso acontece todo dia.
- Todo dia é exagero dessaí! Acontece de vez em quando.
- Isso porque você não é mulher, fidumaégua!
- E eles respeitam mulher ou homem? Não teve o menino do 309? Tiveram pena dele?
- Nossasenhora, é verdade. Fizeram isso com o menino. É verdade... crendeuspai...”


“Essa é nova por aqui. Tesãozinho.”

Dois dias depois de sua chegada conseguiu finalizar tudo que precisava fazer para ajudar a tia, arrumar a casa, organizar seu cantinho e começar a se preparar para começar a viver a cidade. Nesse tempo já havia se informado sobre a escola que havia no bairro, e ia estudar como ouvinte por algum tempo até conseguir se matricular, mas isso já era uma maravilha para ela. Comprou jornal e começou a procurar emprego, porque ia ter que ajudar nas despesas da casa, e a mãe e o pai não iam conseguir ajudar em nada mesmo, inclusive num desses dias telefonou para eles e conversaram bastante, com a mãe chorando o tempo todo e o pai respondendo de forma monossilábica como sempre tinha sido. Desligou o telefone e foi para a cama chorar abraçada no seu travesseiro, que tinha vindo com ela na viagem. Imagina viajar sem o travesseiro!?
No primeiro dia de aula já chamou a atenção em sua turma, porque era uma novata no terceiro mês de aula e também porque era uma menina atraente realmente, mesmo com todo o recato de suas roupas e comportamentos. Fez algumas amigas e achou muito bom ver os meninos olhando para ela com interesse, alguns fazendo gracejos, outros a olhando com visível desejo, e ela se lembrando das suas pequenas aventuras na sua cidadezinha. Não havia deixado nenhum namorado, noivo ou compromisso para trás, mas certamente já tinha seu pequeno histórico de namoricos, sempre escondido do pai e com a típica cumplicidade da mãe.
Arrumar emprego estava se mostrando mais difícil do que ela imaginava, porque mesmo com todas as reportagens que ela via na televisão na casa dos pais, ainda assim pensava que na cidade grande as oportunidades brotavam a cada passo nas ruas, e não era bem assim.
Com algum tempo disponível, ou melhor, com todo o tempo do mundo disponível ela ia se aperfeiçoando em procurar emprego, e começou a perceber que uma roupa mais caprichada ajudava nas entrevistas, um batom discreto, mas presente, também era uma força considerável, e o perfume pouco, porém marcante sempre deixava essa boa impressão.
Mas algo acontecia nas entrevistas que ela não esperava: cantadas. Não havia feito assim tantas entrevistas, mas a quantidade de cantadas era muito alta, até porque não se achava bonita, atraente ou sexy. Afinal devia ser, porque as cantadas não paravam.


“Ajudar? EU? E fazer o que? Entrar no meio, meter o pé nas costas do cara, gritar com ele? Tá maluco? Era eu fazer isso e no dia seguinte ia acontecer comigo, não ia resolver nada, só ia lascar minha vida de vez.”


“Covarde é tua mãe! Vêm morar aqui e você vai aprender como é que funciona o sistema, seu otário!”


“Chamar quem? Polícia? Hahahahahahahahah você não vêm muito para estes lados da cidade, né? Polícia não vem aqui porque tem medo. Os que vem são mais bandidos que os bandidos. Polícia.... humpf!”


Na verdade bonita não era sua descrição mais apurada, até porque nos acostumamos a chamar bonita alguém que tenha o rosto bonito, e isso ela não tinha. Tinha bochechas meio exageradas, o nariz também não ajudava muito e o conjunto total era bom, mas nada que marcasse a lembrança ou despertasse o desejo. Seu segredo revelado era o corpo, muito bem feito e bonito, com pernas grossas e firmes, a bunda provocante, ombros um pouco largos e seios médios, e isso a fazia sempre um chamariz na rua, nas festas, na escola e em qualquer lugar que fosse. Mesmo usando roupas recatadas, sem decotes nem fendas, ainda assim seu corpo era provocante por demais para ser enevoado por tecido ou coisa parecida. Ela chamava a atenção, e não era exatamente consciente disso, já que era menina recém chegada da sua cidadezinha, onde era apenas mais uma guriazinha de origem idêntica a outras tantas. Não se via como a mulher desejável que na verdade era, e até poderia fazer bom uso de um pouco mais de auto-estima, mas aí entraríamos no terreno do imponderável, seja lá o que for isso.
Com essa baixa auto-estima demorava a perceber quando estava sendo assediada, mesmo quando enfrentando cantadas pouco educadas ou elegantes, e junte-se a isso o fato de ser realmente uma pessoa ingênua, e tínhamos então uma criatura desligada da maldade e malícia do mundo, quase sempre.
E sua ida para a cidade maior a deslumbrava de uma forma quase lúdica, e sempre lá estava ela olhando para os lados, para cima, bebendo tantas impressões sensoriais que surgiam, vitrines, prédios, pessoas, carros, movimento, poluição, embebedando-a de estimulação. Esse deslumbramento e tanta coisa pra se ver a deixavam muitas vezes extremamente vulnerável, quase sendo atropelada um dia por um carro, outro dia por uma bicicleta de entrega, e uma outra vez quase caindo dentro de um bueiro, sem mencionar as inúmeras topadas em pontos de ônibus e postes pelo caminho. Tudo a divertia e ela punha-se a rir em cada uma dessas situações, o que lhe reforçava aquele charme brejeiro e manhoso, impedindo que alguém se irritasse com ela.

“Eu vivia falando pra ela prestar atenção, mas ela estava tão empolgada, tadinha.”


“Ia trabalhar aqui, sim. Foi o primeiro dia dela, ia trabalhar na parte administrativa como auxiliar de escritório. Experiência? Nenhuma, mas não estávamos exigindo para essa vaga. Foi a primeira pessoa que entrevistamos e já gostamos do jeito dela, ela disse que tinha sido uma benção!”


“Aqui era um setor nobre, pode acreditar, mas esse projeto da prefeitura não deu certo, e essas praças foram ficando abandonadas, e logo os maloqueiros surgiram, e começaram a fumar droga aí na frente, roubar os carros da vizinhança; logo as casas estavam sendo assaltadas, e custou pouco para a polícia deixar de vir aqui. De vez. Aí virou isso que o senhor está vendo.”


Um pouco religiosa, nada demais, mas o suficiente para suas rezas e orações todas as noites antes de dormir, e mais que suficiente para o agradecer emocionado olhando para os céus, bendizendo a graça de ter conseguido o primeiro emprego. Seria auxiliar administrativa, com um salário de merda e já com dois ou três colegas de olho nela; mas nem sabia o que era uma auxiliar administrativa, o salário de merda era muito mais do que ela já tinha ganho em toda a vida e os colegas de olho... que mal há?
Naquele dia voltou para casa eufórica e emocionada, afinal de contas tinha sido seu primeiro dia e tinha visto um monte de coisas diferentes e novas, tecnologia, processos, rotinas de trabalho, coisas do mercado, e ela se sentiu grande, talvez pela primeira vez.
Foi para o ônibus fazendo planos e imaginando como iria gastar tanto dinheiro, as roupas que compraria, os lugares que ia conhecer, festas, tudo que nunca tinha vivido em sua cidadezinha. Nesses delírios não notava trânsito, barulhos e nada ao seu redor. Ao descer do ônibus no bairro onde morava a tia, saiu pulando pela calçada, ensaiando uma dança engraçada de quem se sente muito bem.
Por causa dessa empolgação toda não percebeu quando começou a ser seguida por dois sujeitos. Eles já haviam observado aquela menina dias antes, e agora viam uma oportunidade, a hora certa, o sol já posto, a menina descuidada.

“Estrupo. Ela foi estrupada por dois caras. Um troço feio, viu? Estouraram a menina toda, em tudo quanto é buraco, se é que me entende? O olho? Parece que um dos caras ficou puto dela tentar reagir e enfiou o dedão no olho dela. Não sabia? É desse jeito, estoura igual uma gema de ovo cozido, aí fica esse caldo escorrido na cara. Um trem nojento. Tempo? Sei lá, uma hora, talvez um pouco mais. A vizinhança diz que ela gritou feito uma doida, acordou criança, assustou velho, foi um berreiro só. Ajudar? Humpf!”


“Tava todo mundo na janela. Todo mundo viu. Quase uma hora berrando, sendo surrada e os caras se revezando nela. Todo mundo viu. Todo mundo sabe quem foi. Ninguém ajudou. Ninguém nunca vai ajudar. Aqui é assim...”

Falar o que?

O Inimigo do rei

Um comentário:

Bosco Carvalho disse...

Olá Eduardo,

Gostei de seu texto.
De sua revolta com a indiferença.
De seu asco visceral.
De seu grito de dor.
Ecoando, como se fosse a da própria estuprada...

Aliás, você tem provado que Goiás tem um 'que' de rebeldia...
De livre-pensamento, tipo 'Querdenker'.
Nossos caminhos começam a ficar paralelos.
Pode ser que nos cruzemos em algum beco por aí...

Acredito que será um prazer...

Abraços,


Bosco