sexta-feira, 21 de abril de 2006

O canto aconchegante que existe no inferno

Esse texto foi feito para a NewsLetter do Circuito Fora do Eixo. A pedido da Marielle eu vou comentar sobre a cena de GoiâniaTown e os locais de show que existem por aqui, bem como o que vem acontecendo. Esse foi o primeiro.

E.


Lembra quando você é guri e tem que dividir o quarto com algum irmão? Quem teve que passar por isso nunca se esquece, porque tudo que a criatura consegue desejar é um quarto só para ele, onde possa ter privacidade e poder falar "Meu Quarto" de boca cheia. E um dia finalmente essa criatura consegue um quarto, porque a irmã mais velha casou ou coisa parecida, e começa a montar o quarto DELE, com as coisas DELE, e logo ele descobre um canto no quarto onde é bom de sentar para ler. Descobre ainda um canto no quarto onde ele gosta de ficar para ouvir música, tem o lugar para sentar e bater papo com os amigos, e cada um daqueles cantos vai ficando com uma característica inesquecível e marcante que se define com uma palavra: aconchego.
Aqueles cantos são aconchegantes, porque possuem o tanto de pequenez para você ter a sensação de proteção, mas possuem o tanto de espaço para sua sensação de conforto. E seguimos pela vida procurando cantos aconchegantes, na sala de aula, no escritório, em todas as próximas casas que talvez tenhamos, no colo de todas as mulheres (ou homens, cada um sabe de si) das nossas vidas porque o tal canto aconchegante é uma necessidade, uma volta ao útero talvez, em que tínhamos o mundo inteiro ao alcance de nossos dedos em formação.

E quando esse canto aconchegante é num local gostoso do inferno? Eu explico; e quando esse canto confortável é um lugar barulhento, quente, apertado e inesquecível. Essa mistura de sensações, de conforto com desconforto, de aconchego com aperto, de paz com insanidade, tudo isso é o Capim Pub do eterno Afonsim, um local em que o rock de GoiâniaTown se desenvolve às margens do córrego CapimPuba, de título indígena que oferece seu nome à criatividade do proprietário.

Mas antes de falar da casa, vamos falar do insano proprietário. Conheci Afonsim numa época em que havia poucas bandas na cidade, eu fazia o segundo grau (hoje é ensino médio, né?) e procurava o que fazer nas madrugadas da cidade. Afonsim era vocalista do Restos da Cultura Proibida, uma banda das mais criativas que já existiu nesses lados, misturando um rock inglês, com um baixista maldoso com as quatro cordas, muita atitude visual, quase cênica, e músicas inesquecíveis. Afonsim era a figura que estava à frente daqueles caras, e movimentava a cena da cidade numa época em que não existiam certezas, nem rótulos, nem segregação; e todo mundo que gostava de rock andava junto.

Afonsim sumiu com o fim da banda, e eu fui encontrá-lo novamente muitos anos depois na Broadway, em Arraial D'Ajuda, ambos estávamos zêbados e dando risada, ele vendendo artesanato, e eu tentando descobrir o caminho do albergue, ou qualquer caminho que me levasse.

E a próxima vez que eu o encontrei foi capitaneando essa casa exótica e única, o Capim Pub, o canto aconchegante que ele abriu para que o underground goiano possa sobreviver. Pequeno, estiloso, tosco, confortável (tem um puta sofazão lá) e barulhento, porque sempre tem alguma banda tocando lá. O palco é pequeno, a banda fica junto da platéia, tem uma porta no meio do local de show, o banheiro é único e quem vai lá uma vez fica marcado para sempre. Tanto pelo jeitão de "nossa casa" que Afonsim conseguiu imprimir, recebendo as pessoas cumprimentando uma a uma com ares de dona de casa, quanto pelos shows memoráveis que por lá acontecem, com participações especiais e muita energia; e sempre fica um gosto de "preciso voltar" que acaba levando as caras conhecidas novamente para lá. E pode parecer paradoxal ser confortável sendo pequeno, ou ser aconchegante sendo barulhento, mas o Capim Pub é realmente paradoxal, uma resposta para perguntas que ninguém tinha pensado em fazer.

O Capim Pub vem fazendo o CapimRock, agitando a cidade aos domingos sonolentos, sempre com três (no máximo quatro) bandas por evento, começando sempre por volta das dezoito (no máximo dezenove) horas, preço suave no ingresso, sem limite de tempo para as bandas tocarem e sem limite de liberdade para quem vai, porque é uma nossa casa longe de casa (como diria a propaganda de algum hotel nos anos 80). O lugar é improvável, o tamanho é inédito, a televisão passa programas exóticos, as bandas são viscerais e o programa é obrigatório. Para quem quiser achar, o Capim Pub fica na Rua 05, número 65, no Setor Aeroporto, aqui em Goiânia Rock City.
E se nós aqui usamos esse apelido para nossa cidade, e nos orgulhamos de poder usar, muito disso atualmente se deve aos guerrilheiros incansáveis do Capim Pub, Afonsim e Segundo, que criaram esse evento e mantém na garra e no suor. O CapimRock conta sempre com o apoio da TwoBeersOrNotToBeers, selo que defende e divulga o underground, dando oportunidades para bandas que sem ele não teriam lugar para tocar, e isso é importante, muito importante.

Pequeno, barulhento, quente, mas com um sofá confortável, boa cerveja, bons amigos e muito rock todos os domingos, o Capim Pub é o nosso canto aconchegante que existe no inferno. Quando chegar lá, abraça o capeta e aproveita.

Eduardo, O Inimigo do rei
eduardoinimigo@gmail.com

Nenhum comentário: