quarta-feira, 19 de abril de 2006

E para os xiitas do rock eu ergo meu dedo médio. – Segunda parte, a ciência.

Semanas atrás me servi de uma preciosidade para expressar algo de revolta e indignação com a cobrança xiita de posturas e atitudes, e Álvaro me foi muito generoso ao servir-se perfeitamente aos meus propósitos, mas tenho a firme convicção de que estamos vivendo novamente um fenômeno "Surfista Calhorda" nessa discussão do rock independente.

O fenômeno "Surfista Calhorda" é o seguinte: nos anos 80 a banda gaúcha Replicantes lançou a música com esse nome, e fez sucesso nacional, tocando em rádios, vendendo discos ("O futuro é vórtex" da banda e "Rock Grande do Sul" um pau de sebo da região) e mostrando a cara para o país todo. E disseram que a música gerou um fenômeno interessante entre os surfistas, isso porque a música falava do Surfista calhorda, que é aquele sujeito que tem carrão invocado (hoje diríamos "tunado"), é estudante careta de direito, sustentado por mesada de família, mas com pose de durão, surfista e com atitude. Todos os surfistas "de verdade" sentiram-se vingados com a música, pois ela falava diretamente daquele monte de bocoió que fingia ser surfista e só atrapalhava nas praias e nas ondas. E aqueles que eram surfistas calhordas "de verdade" não admitiam isso, e também adoraram a música, por achar que ela se referia a outros, que não eles. Ou seja, todo mundo adorou a música!!
Com o último texto aconteceu esse fenômeno, ninguém admitiu-se xiita nas discussões levantadas e todos acharam que o texto apontava bem o dedo na cara de quem "caga regra" na cena rock independente. Que beleza, não? Não existem xiitas, radicais, fanáticos, ditadores, são todos legais, gente fina, libertários e outros adjetivos que preguem espaço total para atitude particular e própria. Pois então para apimentar o texto eu assumo: eu já tive atitude xiita! Sim, é isso mesmo, (como eu digo no Loaded – www.loaded-e-zine.com) eu tive comportamentos xiitas, autoritários e babacas. Uma dessas vezes aconteceu numa discussão na comunidade da Anti-Records, selo do frito Richard daqui de GoiâniaTown, quando um sujeito da terrinha, conhecido por nome Renato (ex-Obesos, puta banda!) expressou sua indignação com uma comunidade muito freqüentada da cena, e eu respondi com toda a pompa e circunstância que o momento NÃO pedia, tá aqui pra quem quiser ver - http://www.orkut.com/CommMsgs.aspx?cmm=10440997&tid=2454973044070615179 – e mesmo com a discussão tomando rumos saudáveis, eu assumo que fui um palerma ao responder a crítica do Renato com pedrada, bancando o dono da verdade, exatamente o que condeno no texto anterior. Renato foi generoso comigo e trocamos alguns scraps e discutimos algumas coisas e agora só falta ele me pagar uma cerveja ao vivo para nos considerarmos amigos verdadeiramente. rs
Acontece o seguinte, pensar diferente é natural e saudável, criticar os outros é super natural também (ou alguém aqui vai em festa de casamento e não fica criticando os outros?), mas o problema reside quando passamos a ignorar que por trás dos comportamentos do outro existe um mundo, uma história, uma vida. Coisas dignas de respeito e consideração. Me lembra a teoria dos Modelos Mentais, que é um termo criado nos anos 40 por um psicólogo escocês chamado Kenneth Craik. Segundo ele Modelos mentais são as crenças, imagens e conceitos profundamente arraigados que temos sobre nós mesmos, nosso mundo, nossas organizações e como nos encaixamos neles. Ou seja, nossa forma própria e particular de ver o mundo.
Só para exemplificar, em "A República" o filósofo grego Platão conta o Mito da Caverna, no qual um grupo de habitantes do subterrâneo confundem as sombras que eles vêem na caverna com a realidade. Quando uma das pessoas descobre a verdade sobre a origem das sombras e tenta compartilhar sua descoberta com os demais, eles se voltam contra ele e o massacram. Isso apresentado de forma reduzidíssima serve para mostrar que o Mito da Caverna já anunciava a teoria dos Modelos Mentais, que hoje serve de divergência entre gente de todos os cantos. Por exemplo? Minha crítica à forma "miguxa" de escrever do Renato foi respaldada pelo meu Modelo Mental, que condena a pouca leitura, que critica a falta de informação e que associa "nauns" e "sohs" com tudo isso condenável apresentado anteriormente. Mas se eu parasse para pensar um pouco apenas, chegaria à conclusão de que pessoas que usam abreviações e termos internéticos em mensagens de orkut não necessariamente são pessoas sub-literatas, como o Renato me mostrou nos scraps posteriores, expressando-se de forma clara e inteligente. E ainda mais, eu chegaria também à conclusão de que pessoas que realmente são sub-literatas não são necessariamente piores que alguém com leitura. Olha que babaquice a minha!
No texto anterior eu me vali da poesia e anunciei que esse texto seria baseado na ciência, pois então mergulhemos de vez nos conceitos científicos dos Modelos Mentais, e antes que alguém reclame; sim pode ser pesada a leitura. Segundo os estudiosos do assunto todos possuem modelos mentais, o que pode se reduzido ao comentário clássico de que "todos possuem cultura", o que é a mesma coisa. Segundo o teórico cognitivo Edward DeBono "modelos mentais são o resultado de um processo psicológico no qual redes neurais de seu cérebro trabalham para categorizar e organizar o infinito fluxo de complexas informações que você absorve todos os dias" , ou seja, os modelos mentais são gerados pelo processo de organização das informações cotidianas.
Modelos mentais nos levam a tratar nossas inferências e opiniões como fatos concretos e inquestionáveis, costumamos ver nossos modelos mentais como o fato, e por isso ficamos surpresos (e algumas vezes indignados) quando vemos alguém que não pensa como pensamos. O problema começa quando sabemos também que modelos mentais sempre são incompletos, porque é impossível absorvermos todo o mundo, e isso influencia nosso modo de ver o mundo. Com base em nossos pedaços de informação interpretamos o mundo inteiro e as pessoas ao nosso redor, e aí entramos em uma roda viva sem fim, porque os modelos mentais influenciam os resultados que colhemos, e com isso reforçam a si mesmos. Uma vez que escolhemos uma crença sobre o mundo, ela tende a se tornar muito mais arraigada, porque passamos a selecionar estímulos referentes a ela.
Por exemplo, eu como busco utilizar conceitos e paradigmas da minha atividade profissional, poderia ser tentado a ver os "toscos por opção" (copyleft by Type) como preguiçosos ou desleixados, e da mesma forma os "toscos por opção" poderiam ser tentados a ver meus esforços como vendidos, neoliberais ou marketeiros. Mas aí reside um problema de gênese, porque os modelos mentais freqüentemente ultrapassam sua utilidade, ou seja, determinados modelos mentais tiveram alguma utilidade em algum momento, mas ficam ultrapassados eventualmente. Não preciso acreditar a vida inteira em algo que acreditei a quinze anos ou a quinze minutos, porque sou uma criatura em constante transformação, crescimento, evolução e (r)evolução. Isso me faz passível de aprendizado, e esse é o exato momento em que passo a ver que a "tosqueira por opção" é apenas isso, uma opção. Não se trata necessariamente de falha ou erro, mas uma preferência diferente da minha. Tenho todo direito de criticar, mas não posso basear a crítica numa verdade que é somente minha, não posso então ignorar que para muitos aquela é a verdade.
Quer um outro exemplo? Uma vez cientistas descobriram que a menor partícula subatômica, chamada neutrino, possuía massa e peso mensuráveis. Pode parecer um exemplo besta, mas isso significa muito, porque aceitava-se que os neutrinos não possuíam peso nem massa. Essa descoberta levou os cientistas a rever seus estudos para considerar esse fato, e toda uma gama de conhecimentos precisou se adaptar à nova realidade.
De forma objetiva o que quero dizer é que fazemos nossas opções ideológicas, estéticas, políticas, musicais, ou qualquer outra opção baseados em nossos modelos mentais, e por um tempo (variável de acordo com a situação e/ou a pessoa, claro) esses modelos são válidos. Mas não posso me arvorar a petulância de condenar alguém ao calvário simplesmente por pensar diferente de mim, já que o mundo visto pelos olhos do outro pode ser – e certamente é – bem diferente. E antes que me condenem o rótulo de autoritário ou censor de liberdades individuais, não quero deixar implícito que não se possa criticar as posições ou opiniões do outro, mas antes quero deixar claro que a verdade absoluta não existe, ao menos não existe para nós criaturas que vivemos na caverna.
Saber entender o ponto de vista do outro pode ser pedir muito para mentes tacanhas, mas ter o mínimo de educação para apontar as falhas encontradas não é exatamente grande esforço.
Aos príncipes meus irmãos, xiitas detentores da luz e do saber, possuidores da verdade absoluta do universo, apenas peço-lhes esse cuidado, pois a cena rock independente já possui obstáculos inúmeros para enfrentar, não precisa de dissidência burra e mal-feita para dinamitar as poucas pontes que forem construídas. Existem pessoas para todas as vertentes musicais, estéticas, ideológicas e estilísticas existentes, em todas as cidades que vemos a cena se desenvolvendo, o que se faz necessário é buscar dirigir-se ao seu público, gerar esse público e esse círculo virtuoso de crescimento e melhoria, a cada um do tamanho da sua fome, no limite de seu esforço.
E isso, antes de ser marketing, é anarquia.


Na terceira parte, o popular.



Eduardo, O Inimigo do rei
eduardoinimigo@gmail.com

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