segunda-feira, 13 de fevereiro de 2006

Benchmarking sertanejo e Festa Punk - tudo pelo público!

Pra começar esse é o comentário que o Victor postou na comunidade Fora do Eixo, comentando sobre o texto mais abaixo:
Agora fiquei orgulhoso. Sério, finalmente alguem com cabeça aberta suficiente para tirar coisa boa de um show de sertanejo. A cada vez os textos do Eduardo ficam melhores. Vejo aí um cara foda. E posso dizer que tive orgulho de ler isso.
valeu Victor!!
Vamos ao texto...

Benchmarking sertanejo e Festa Punk – tudo pelo público.


“Doente de amor
Procurei remédio na vida noturna”

Não exatamente “doente” de amor, mas certamente por causa do amor, no dia 04 de fevereiro, sábado, fui ao show “Viola de Ouro – Encontro Sertanejo” aqui em GoiâniaTown assistir Rick & Renner, Edson & Hudson e Matogrosso e Mathias. Para quem não conhece, as duas primeiras são duplas sertanejas da moda, com muito sucesso atualmente, e a última é uma dupla clássica com quase quarenta anos de tradição e serviços prestados. Falei que fui por causa do amor, porque minha mulher gosta de música sertaneja, e para acompanhá-la lá fui eu. E mesmo conhecendo poucas músicas, existem algumas clássicas canções sertanejas que são imbatíveis quando se está numa fazenda, enchendo a cara de pinga de engenho e fartos pedaços de porco. Se somado a isso ainda existir uma mesa de truco, então pode acabar o mundo, porque é diversão na certa, e não se pode jogar truco tomando pinga e comendo porco numa fazenda escutando Dead Kennedys. Quer dizer, até pode, mas eu acho que fica estraño.
E lá fui eu querendo me divertir, sem preconceito e preocupado em beijar na boca. Mas ao chegar ao local do show, observei algumas coisas que me fizeram questionar vários comportamentos e atitudes que vemos no cenário rock independente cotidianamente. Comecei a fazer um benchmarking não autorizado.
Para quem não é da área da administração, benchmarking pode soar como um estrangeirismo sem sentido, mas tem todo o sentido. O benchmarking é uma atividade empresarial comum, e se trata simplesmente de observar uma empresa e aprender com o que ela tem de melhor. Se, por exemplo, eu quiser ver como realizar um atendimento rápido eu vou ao McDonald´s. Posso dizer que os sanduíches de lá são sem graça e insossos (porque eu realmente acho isso. Blargh!), posso dizer que é uma megacorporação americana demonizada por anos e anos de estratégia imperialista, posso criticar o que quiser, mas não posso negar que o atendimento dos caras é muito rápido. E isso é o benchmarking, coisa que fazemos (nós que temos banda) quando vamos ao show de outra banda, observando a presença de palco, os comentários, a ordem do set list, para aprender e incorporar as “melhores práticas”.

“Em uma boate aqui na zona sul”

Pois bem, lá estava eu chegando ao local do “Viola de Ouro”, um clube da cidade e percebi uma coisa interessante: a quantidade de flanelinhas. Todos os flanelinhas desse lado do planeta estavam por lá, e fiquei pensando como sempre temos problemas com carros arrebentados, arranhados, equipamentos roubados e quetais nos eventos de rock. Claro que aprender é também adaptar, porque nos shows de rock independente não temos ainda tanto público quanto um “Viola de Ouro” (aproximadamente 10.000 pessoas) e os flanelinhas não tem tanto interesse, mas os que usualmente freqüentam os nossos shows não poderiam ser cadastrados e treinados para prestarem um serviço melhor ao nosso público? Trata-se de uma situação que sempre gera conflitos, e são sempre os mesmos caras que estão perto dos shows de rock, porque não transformá-los em profissionais melhores e mais incorporados à cadeia produtiva? Se sabemos que a segurança dos carros do público é um problema recorrente, porque não atuar para resolver isso de forma eficaz?

“Vim curar a dor desse mal de amor na boate azul”

Pensem num show para dez mil pessoas com open bar. Isso mesmo, cerveja “di grátis”! Eu tinha certeza que não ia conseguir chegar perto de um balcão para pegar meu copo de cerveja morna entregue com muita má vontade por algum brucutu descontrolado, e eis que ao entrar no clube me surpreendi novamente. Aproximadamente uns dois kilômetros (sem nenhum exagero típico meu) de balcão, com centenas, muitas centenas de freezers e pessoas servindo cerveja geladíssima. Impressionante não? Não havia fila em lugar nenhum e nunca demorava mais que alguns segundos para reabastecer os nossos copos e voltar ao ponto de onde assistíamos o show. Organização.
Quanta falta isso faz para o nosso sofrido público do rock em eventos que não se lembram que tudo que está sendo feito ali é para o público pagante. Olha que palavra forte: pagante. Quantas vezes somos espremidos em tumultos descontrolados, empurrados por seguranças trogloditas, esperamos em filas kilométricas para comprar um ficha de cerveja, cerveja essa acima do preço justo, acima da temperatura ideal e tudo isso porque pagamos para entrar naquele recinto.

“E quando a noite vai se agonizando no clarão da aurora
Os integrantes da vida noturna se foram dormir
E a dama da noite, que estava comigo, também foi embora
Fecharam-se as portas, sozinho de novo, tive que sair”

Outra coisa usual são os seguranças expulsando o público ao final dos festivais e shows, como se não pudessem mais ficar no ambiente em que foi feito o show curtindo a madruga com os amigos, as bebidas, as lembranças, os beijos e abraços, putz, tanta coisa. Isso porque se formos nos lembrar, as pessoas que acabaram de assistir suas bandas preferidas tocando e semeando adrenalina querem ficar mais um pouco naquele lugar, porque do outro lado da grade ou do portão está o mundo real, com as lembranças de contas, provas, simulados, pais & mães, além de ladrões, punguistas, estupradores, toda uma comunidade unida para rapinar a molecada que vai aos shows. E que normalmente gastou todo o pouco dinheiro da mesada com a catuaba e o acarajé, mas que ainda assim tem o tênis legal para ser roubado. Dureza.
Nem quero me colocar no papel dos organizadores agora, porque estou pensando como público que fui no “Viola de Ouro”, e como público eu muitas vezes quis ficar no lugar um pouco mais, ou um muito mais, e os seguranças não deixaram, me jogando de volta ao mundo real sem câmara de descompressão que me preparasse de novo.

“Você mentiu quando jurava pra mim fidelidade
Fui apenas um escravo da maldade
Você quis, lutou e conseguiu”

Outro detalhe que muito me chamou a atenção no “Viola de Ouro” foi a pontualidade, artigo raro e valioso. Divulgaram que às 22 horas o show começaria com uma banda que nem me preocupei em decorar o nome, alguma espécie de “boi de piranha” pra aquecer a molecada. Pois exatamente às 22 horas os famosos desconhecidos abriram o espetáculo, mesmo com ninguém prestando atenção neles.
É muito comum ouvir gente organizando shows falando “Marca pras duas, pra começar as quatro porque o povo não chega mesmo”, e quando chega muitas vezes fica parado na porta e não entra para o show. Quantas reclamações já ouvi de organizadores de eventos sobre esse comportamento esquizóide do público, sem se aperceberem que atrasando seus eventos reforçam esse tipo de atitude, porque o público também pensa “Se marcaram para as duas, é porque vai começar às quatro”. Ou seja, finge que me ama e eu finjo que acredito, é mão dupla.
O que deveria ser observado e entendido é porque é tão mais divertido ficar do lado de fora nos começos de shows, e muitas vezes durante os shows inteiros. No caso do “Viola de Ouro”, mesmo com alguns milhares de pessoas ainda do lado de fora, driblando cambistas e vendedores ambulantes de whisky com energético (na bandeja! Pira! É um mundo diferente.), o show começou. A famosa banda desconhecida da abertura não ficou com chiliques de estrela de “Não vamos começar, tá vazio” que já vi acontecendo em show de rock. Porque se a banda foi colocada para abrir o evento, isso significa que ela não é o centro das atenções naquela noite. É banda de abertura, então abre. Mas existem aqueles que nesse momento, de abrir um show, são picados por alguma mosca azul e se sentem as estrelas em um espetáculo onde são convidados. Coisa estraña, né?
No “Viola de Ouro” havia um atrativo poderoso do lado de dentro: cerveja grátis! Além do mais não havia quase nada do lado de fora para se fazer, todas as mulheres com seus tops minúsculos e decotados e suas calças justas no limite da gangrena já estavam do lado de dentro, então quem quer ficar do lado de fora? Outra coisa para pensarmos.

”Você brincou com a minha sensibilidade
É o fim do nosso caso na verdade
Só nos restam recordações
Não toque em mim
Hoje descobri que você não é nada
Não podemos seguir juntos nessa estrada
É o fim do amor sincero que eu senti”

E quantas vezes esse público pagante, sendo desrespeitado, descobre finalmente que se dedicou a alguém que não merece essa dedicação. Pessoas que brincam de organizar eventos, mas que ainda confundem simplicidade com tosqueira, talvez por crer que investir em qualidade seja “se vender ao sistema” ou qualquer outra utopia bolivariana semelhante.
Reclamar de preço alto em festival está no contrato, todo mundo faz isso, mas reconhecem quando esse preço alto é justo. E aí surge outro toque do “Viola de Ouro”, porque quando vi a divulgação achei que Rick & Rildo e Edson & Hondson seriam as atrações da noite, e que a dupla clássica e tradicional ia abrir os shows. Fiquei indignado; mas me precipitei na indignação porque na hora do show Rick e Rélges e Edson e Ildes (ou coisa parecida, quem se importa?) abriram o espetáculo para Matogrosso e Mathias, com clássicos sertanejos aos montes para embriagar uma platéia que a essas alturas já tinha litros de cerveja entre as orelhas.
Então o público rock quando vê o preço de festivais – principalmente – reclama porque a maioria são estudantes, grana curta e que não juntam dinheiro ao longo do ano para poder ir aos festivais (duro, mas é verdade), mas quando vêem atrações de alta qualidade, bandas com shows bem feitos, poderosos, que mostram o suor do trabalho cotidiano de se preparar para subir num palco, aí o público reconhece o valor investido. Se, além disso, ainda existirem grandes medalhões do rock na lista, aí então o valor se torna algo mais aceitável ainda.
Ontem, dia 10 de fevereiro, o SANGUE SECO (para quem não sabe é a banda em que sou vocalista/letrista) abriu o show para Resistentes, Albert Fish (de Portugal) e Garotos Podres. Muita gente tinha reclamado do preço, pedido para entrar “na faixa” (isso é muito comum, não é verdade?), dar um jeito e coisa e tal, mas os que efetivamente foram viram que o preço foi justíssimo. Nem vou falar do nosso show ou do Resistentes (do meu amigo homônimo Eduardo Mesquita), mas quando Albert Fish tocou e destruiu tudo, com direito a cover de Sham 69, ali a platéia percebeu – se ainda havia alguém em dúvida – que a Festa Punk era pra tocar fogo em tudo. Qualquer coisa depois disso seriam cinzas.
E então entra o Garotos Podres. Pausa.
Pausa porque para mim foi o primeiro show dos caras que eu vi, e o “Mais podres que nunca” foi o primeiro LP punk que comprei com o meu primeiro salário de professor (saudosos tempos de cátedra), então não era um show, era uma viagem no tempo. Eu e muitos outros dinossauros que estávamos ali tivemos aquele momento de epifania que só acontece quando se encontra um pedaço seu que havia ficado pra trás, em alguma prateleira poeirenta da memória. Ouvir “Vou fazer cocô” urrando com ódio de todos os mensalões do mundo fez valer a grana de quem estava ali; emocionar-se arrepiado ouvindo “Subúrbio operário” mostrou que a Festa Punk estava sendo concluída em altíssima qualidade.
Essa mesma sensação que tive ontem eu havia visto no “Viola de Ouro” quando Matogrosso e Mathias desfiaram seu rosário de romance e saudade, com músicas lendárias (como as duas que enfeitam o texto) e aquele tanto de experiência, tarimba e malandragem de palco, tantas vezes pisado. Boas escolhas é mais da metade do sucesso de um festival, de satisfazer o público pagante e de tornar o evento uma lembrança duradoura pra todo mundo, presentes, pagantes, tocantes, cantantes e organizantes.

“Mas aprendi
Fazer amor pra te ferir sem sentir nada
Enquanto eu amava, você me enganava
De igual pra igual
Quem sabe a gente pode ser feliz “

Resumindo a ópera, mesmo com as diferenças abissais entre o “Viola de Ouro” e a Festa Punk, ainda assim vemos que o trabalho bem planejado e bem realizado consegue atingir aquilo que deve ser o principal objetivo dos organizadores: agradar e satisfazer o público pagante. Agradado e satisfeito, esse público volta, se fideliza e garante a longevidade dos eventos.
Sem preconceitos, de cabeça aberta, podemos aprender com qualquer situação, se vamos colocar na prática é uma outra opção.
Tomara que cada vez mais, optem por isso.


Para quem quiser saber, as músicas que enfeitam o texto são “Boate Azul” e “De igual pra igual”. Serve uma cachacinha dourada, põe uns torresmos na mesa e deixa a madrugada virar.




Eduardo, O Inimigo do rei

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