quarta-feira, 29 de março de 2006

Nouvelle Cuisine ou Pastel de feira?

Comer!

Tive uma namorada na época de faculdade que dizia que "melhor que comer, só ser comida", o que não deixava dúvidas sobre seu prazer tanto com o sexo, quanto com os prazeres da mesa. Comer realmente é uma experiência que merece tempo, dedicação e que sempre se define por escolhas, hábitos, prazeres, costumes, e muito de tudo isso por experimentações. Até porque "a fome é humilhante", já disse o poeta. Mas se formos avançar no tema da comida, vamos ver que esses hábitos e prazeres por vezes colocam pessoas em flancos distintos. Não que precise ser assim.
A cozinha francesa, por exemplo, que na década de 70 gerou a "nouvelle cuisine" como contraponto aos banquetes e cardápios intermináveis, pantagruélicos e exagerados.. Esse movimento, com seus defensores apaixonados, durou por uma década aproximadamente, quando no final dos anos 80 a cozinha francesa buscou um retorno às tradições, sem, no entanto, renunciar a alguns detalhes pertencentes a nouvelle cuisine. Facções diferentes que aprenderam uma com a outra. Integração.Em outro extremo temos o pastel, um lanche tipicamente brasileiro, que tem sua origem no "rolinho primavera" da culinária chinesa. Cabe comentar que o surgimento do pastel se deve aos imigrantes que precisavam se adaptar ao que existia de matéria prima no Brasil, e sua popularização se deve aos japoneses que aqui chegaram depois da Segunda Guerra Mundial. Precisando se passar por chineses, para driblar o preconceito e a discriminação, os japoneses em sua maioria foram responsáveis pelo surgimento de inúmeras pastelarias nas cidades onde aportaram. Daí para ocupar as pontas saborosas das feiras, foi um pulo.
Conheço pouco de cozinha francesa, e o que conheço se deve às artes e talentos do Luciano Bocão (batera do SANGUE SECO, chef e refinado enófilo também), que já me honrou com convites para várias degustações marcantes. Em especial me lembro de um Miolo de Alcatra com Ervas e Cogumelos, feito na casa das irmãs Camila e Aline para receber inimigos de outros estados, que por muito pouco me mata de gula. Mas certamente conheço com maior familiaridade as maravilhas de um pastel quente, sequinho e bem recheado, e guardo boas lembranças de tantas vezes que eu e Maurício Mota (vocal do HTS) pulamos o muro do Colégio Ateneu para comer pastel na feira logo pela manhã, com um farto copo de caldo de cana na banca da japonesa. Sem falar nas madrugadas terminadas ao redor do pastel inesquecível do Bar do Kuka, do tamanho de um travesseiro e regiamente recheado.Isso tudo dito por que se existem públicos para tipos tão distintos de comida, acredito piamente que existem públicos para todos os tipos de eventos que surgem em qualquer cidade. Gente que quer um evento sem filas, com lugar para sentar, temperatura adequada e som de qualidade; e gente que quer um evento sem nenhuma preocupação com o ambiente, porque o que interessa é a dedicação, a entrega, a ideologia e o som cru, sujo e na estratosfera, por exemplo. Já falei isso em outros momentos, mas acredito que muitas vezes ainda vemos equívocos por justamente se acreditar que alguém que goste do prato francês não vai gostar do pastelzão de carne apimentado. Mas se o grande contribuinte do processo de crescimento é justamente o contato entre situações aparentemente contraditórias e antagônicas! Se é justamente quando nos confrontamos com o novo que podemos perceber oportunidades novas, novas situações, sabores, amores, quereres e gostares, porque proibir-se de conhecer algo ainda alheio à sua realidade?
Na cena rock independente de GoiâniaTown eu sou um novato, ou um "new generation" como vi esses dias num site, isso porque nos anos que a cena rock floresceu eu estava me casando, trabalhando feito um loki, envolvido com outro mundo. Quando me envolvi com o rock, muito pelo viés do meu trabalho, e também pelo sonho de viver do e no rock independente, comecei a procurar pelas oportunidades de renda e lucratividade nos eventos do rock, e até por essa empolgação incorri no erro ingênuo de transparecer (passar uma imagem equivocada) que priorizava ou valorizava um lado da cena e denegria e desrespeitava o outro. Como se somente o Miolo de Alcatra pudesse me alimentar, e o pastel não me fizesse feliz e satisfeito. Quem viu isso, viu errado, ou quis ver errado.
Quando eu freqüentava o rock na cidade, muito tempo antes do Cantoria, muitos aqui ainda viviam longe de GoiâniaTown ou ainda usavam calções com personagens da Disney. Sou do tempo de ver Choque Cultural tocando na Praça Tamandaré, eu vi o Frenesi Precoce (que digievoluiu para o The Not Yet Famous Blues Band) tocando em "bar de burguês", assisti show do Quarto Mundo no Clube Itanhangá com as famílias sentadas na grama fazendo piquenique, briguei para conseguir K7 pirata do 17º Sexo do finado Mário Martins, e estava no Teatro Goiânia quando o Restos da Cultura Proibida tocou e no meio do show a máquina de fumaça pegou fogo e o Lenine urinou em cima, para apagar as chamas. Eu sou desse tempo, como disse o cabeleira (ou trepadeira, quaresmeira, sei lá) sou um "Velho", e nessas priscas eras não havia isso de "esse tipo de show" e "aquele tipo de show". Eram poucas as oportunidades de se ver uma banda tocando, então sempre que havia era uma oportunidade imperdível, e todo mundo se conhecia e todo mundo ia no show de todas as bandas. Eu posso estar romantizando minhas lembranças, mas é assim que eu me lembro.Semana passada eu fui a um show no CapimPub, do Afonsim (que era vocalista do Restos da Cultura Proibida), tido e reconhecido e valorizado como um lugar tosco e de shows toscos. Fantástico. Além das bandas que tocaram (Kundaline, Against, Ímpeto), aquele tanto de gente legal, conhecida, positiva, compõe a festa, faz a noite valer a pena. Isso porque valorizar esse ou aquele evento é só uma questão do foco que dirigimos nossa atenção, ou como diria a Gestalt-terapia, uma questão de "figura/fundo".
A tosquice de um show desses é só no ambiente, ou seja, no exterior, na aparência. A garra e dedicação dos caras, a felicidade de estar junto de gente boa, a alegria de estar ali fazendo o seu som sem pretensão nenhuma, só alegria e tesão, tudo isso é o que compõe o evento tosco. Tem público para ele? Aos montes! Domingo é dia de CapimRock, e sempre tem público, mas existe ainda desinformação e preconceito. E convencionou-se acreditar que o preconceito existe por parte daqueles que acham que o evento tosco é porcaria, e por isso não vão, não apóiam e se limitam a falar mal. Mas surpreendentemente existe muito preconceito de muitos que são do ambiente, porque vêem o evento como algo para "iniciados", e aqueles que não são "das antigas" são tratados como estranhos no ninho, com reserva, cautela e até distância. Nesse ponto um evento maior e um evento tosco são idênticos, porque quem não é da turma, fica de lado, no canto, sem espaço. Claro que isso não é comportamento padrão, mas de alguns destacados tacanhos que freqüentam e que existem em todas as tribos, que buscam preservar seus grupos porque tem medo do novo.A grande maioria das pessoas envolvidas em rock independente ainda possui, felizmente, a coisa adolescida de querer contato, conversar, trocar idéias, rir junto, e isso faz os eventos, shows e festivais uma celebração muitas vezes maior do lado de fora dos portões do que dentro dos shows.
Por isso não existe o dilema entre o roquefort e o pastel de pequi (se bem que eu detesto pequi), porque existem públicos para todos os eventos. Se a questão principal é o foco dirigido ao evento podemos perceber que os shows toscos querem diversão, integração, uma ideologia que valoriza o ser humano acima de qualquer coisa. Os eventos maiores visam além ou acima disso tudo a remuneração dos envolvidos, lucratividade, contas pagas e profissionalismo.. Não são antagônicos, mas complementares.
Como exemplo, vamos usar alguns itens de "Os dez mandamentos da nouvelle cuisine", elaborados em 1973 por Henri Gault e Christian Millau, e aplicá-los aos eventos rock independente.
1. Não cozerás demais – muitas vezes manter cru, direto, básico é o que basta para garantir a integridade.
2. Utilizarás produtos de qualidade – isso sempre, porque para o público que quer a banda barulhenta e destruidora tragam o HC-137, para os que querem técnica e poder de fogo usem o Macaco Bong, para quem quer alegria e dançar até cair coloquem o Shakemakers! Adequem-se ao seu público!
3. Não serás sistematicamente modernista – inventar moda por inventar moda não se justifica. O simples é o mais certo, então "algumas tradições precisam ser mantidas" (Manifesto Antropofágico da Semana da Arte Moderna).
4. Não usarás truques para melhorar tuas apresentações – seja verdadeiro com o que você pretende. Se pretende ganhar dinheiro, não existe motivo para sentir-se embaraçado com isso, afinal de contas as contas não deixam de chegar.
5. Serás inventivo – criativo para buscar parcerias, novas formas de satisfazer seu público, maneiras de trazer bandas de cada vez mais longe, multiplicar seu nome e credibilidade por todos os cantos.
Se temos o interesse de que o rock perdure e tenha longevidade nas nossas cidades, precisamos parar de picuinhas entre grupos e igrejas dentro da cena rock, e ao invés disso buscar formas de fortalecer ainda mais o movimento, buscando novos públicos, reforçando a imagem de eventos seguros e divertidos, desenvolvendo uma imagem forte.
Sexta feira, dia 10, conversava com o Léo Bigode no lançamento do CD do Rockefellers justamente sobre a necessidade de se levar o rock para as escolas, para o interior dos estados, realizar oficinas de formação de produtores de shows, oficinas de fanzines, porque existe uma multidão de adultos, jovens, adolescentes e pré-adolescentes que não sabem que existe rock independente, e que iam adorar saber isso. E passariam a freqüentar, montar bandas, criar fanzines, fazer shows, e o tsunami não pára!
No fim de tudo uma coisa tenho certeza, domingo 19 de março eu vou ao CapimPub, tem show do Sangue Seco, Rótula e Explícitos, com catuaba no palco e muitos amigos na platéia.
É dia de pastelzão quente e cheio!! E tá todo mundo convidado.
Eduardo, O Inimigo do rei - eduardoinimigo@gmail.com

Um comentário:

Anônimo disse...

E ai Eduardo.Também estava no show em que a máquina de fumaça pegou fogo e o Edson lenine passou apuros. isso faz tempo. o cara é gente boa e faz tempo que não o vejo.att. Cristiano candido.

Cristiano.neto@tjdf.gov.br